segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Enquanto se discute Crivella e Paes...

Pelo menos uma coisa boa a crise financeira do capitalismo global já trouxe. O Mais de domingo voltou a publicar um texto do Robert Kurz.

Kurz fazia parte do grupo de autores que escreviam lá uma vez por mês. Depois de umas mudanças para pior, seus escritos foram substituídos por outros, imensamente mais amenos, menos críticos e burros.

Fazer o quê? O cara é um dos raríssimos intelectuais atuais que conseguem passar uma visão clara e ao mesmo tempo incômoda do que é e o que está fazendo o capitalismo.

Agora que a merda parece ser muito maior do que esperavam todos os analistas bonitinhos da área, a Folha de São Paulo recorre ao seu velho colaborador para sair da mesmice nada explicativa. É uma maravilha ter de volta, mesmo que apenas por um domingo, um texto de Kurz. Ele tá lá, para toda a classe média que assina o jornal. É só querer ler.

Para quem não tem acesso ao conteúdo pago, colo abaixo.

A superideologia

Dinheiro queimado


Colapso aponta para o fim dos EUA como potência mundial e o enfraquecimento do dólar como moeda de troca - e isso pode ser ruim


ROBERT KURZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Crise -qual crise? Eis o que tonitruavam até pouco tempo atrás ideólogos liberais, de direita e também de esquerda, que acreditam na vida eterna do capitalismo. Saiu cada vez mais do foco da atenção o fato de essa espécie de sociedade não apenas ter uma história, mas ser mesmo a história de uma dinâmica cega.
Justamente nas duas últimas décadas, as pessoas queriam perceber apenas os "eventos" transitórios nas formas sociais a-históricas de uma ontologia capitalista. Isso vale para indivíduos comuns e para os pobres, assim como para as elites.
À semelhança do personagem Dorian Gray no romance homônimo do irlandês Oscar Wilde, parecia que no lugar do capitalismo só envelhecia a imagem do mundo social por ele criado, assumindo os traços da miséria, enquanto a lógica do dinheiro brilhava em falso frescor juvenil.
Agora, a "Segunda-Feira Negra" da maior quebra financeira da história [a do Lehman Brothers, 15/9] desvela num único golpe o verdadeiro rosto do Dorian Gray capitalista.
Ocorre que ninguém quer reconhecer essa natureza do novo surto de crise. A confiança atávica no capitalismo conduz apenas à busca de culpados.
"Práticas nada sérias" de especuladores e uma "política econômica anglo-saxã" são responsabilizadas pelo desastre. Tal explicação míope com ecos anti-semitas já foi mobilizada recorrentemente no passado.
Há mais de 20 anos uma onda de crises financeiras acompanha a globalização. Todas as medidas aparentemente bem-sucedidas para evitar uma "fusão nuclear" do sistema financeiro internacional só lograram reformular o problema, em vez de solucioná-lo.

Humanos obsoletos
Sua evolução atual implode todas as concepções até agora propostas. Não afetou apenas o setor dos créditos hipotecários nos EUA, mas provocou também uma reação em cadeia, cujo fim ainda é distante.
É impossível que as causas sejam a falha individual e as deficiências morais dos atores. Elas só podem residir no núcleo do sistema, referido à economia real.
O capitalismo é apenas a acumulação autotélica de dinheiro, cuja "substância" consiste no uso crescentemente ampliado da mão-de-obra humana. Ao mesmo tempo, porém, a concorrência conduz a um aumento da produtividade, que torna a mão-de-obra obsoleta, em escala também crescente.
Apesar de todas as crises, tal autocontradição parecia dissolver-se sempre em uma regeneração da absorção maciça da mão-de-obra por novas indústrias. O "milagre econômico" depois de 1945 transformou em credo essa capacidade do capitalismo, mas, desde os anos 1980, a "Terceira Revolução Industrial", microeletrônica, ensejou uma nova qualidade da racionalização, que desvaloriza a mão-de-obra humana em medida antes desconhecida.
Sem o surgimento de novas indústrias dotadas da potência de crescimento auto-sustentado, a "substância" real da valorização do capital se derrete.
O neoliberalismo foi tão-somente a tentativa de gerir com meios repressivos a crise social daí decorrente, por um lado, e de produzir um crescimento "sem substância" do "capital fictício" mediante o inchaço irrefreado do crédito, do endividamento e das bolhas financeiras nos mercados de ações e de imóveis, por outro lado.
Mas essa abertura mundial das comportas monetárias e, sobretudo, a avalanche de dólares produzida pelo Banco Central dos EUA já foram o pecado original do assim chamado monetarismo, que postulara como cerne da doutrina neoliberal a redução forçada da quantidade de dinheiro.
Na verdade, o jorro de dinheiro, criado pelo Estado a partir do nada, subsidiou uma inflação de ativos patrimoniais fictícios. O paradoxal "socialismo do dinheiro sem substância" experimenta agora seu "Waterloo", como antes já ocorreu com o capitalismo de Estado do Leste Europeu e a versão keynesiana do crescimento fomentado pelo Estado no Ocidente.
A estatização de fato do sistema bancário dos EUA e o plano do secretário do Tesouro dos EUA para conter a crise com recursos estatais só podem ser avaliados como atos de desespero. Da noite para o dia revelou-se o caráter de capitalismo estatal da suposta liberdade dos mercados.

Estágio final
Comentaristas irônicos já falam em "República Popular de Wall Street". Mas isso não resolve nada.
De certa forma, estamos diante do último estágio do capitalismo de Estado, que na melhor das hipóteses pode postergar o colapso dos balanços com mais emissões inflacionárias de moeda.
À diferença de épocas anteriores, inexiste espaço para novos programas conjunturais, que precisariam alimentar-se na mesma fonte.
Com isso também chegou o fim dos EUA enquanto potência mundial. Não é mais possível financiar guerras intervencionistas com recursos próprios. O dólar se torna obsoleto enquanto moeda mundial.
Ocorre que não podemos vislumbrar no horizonte nenhum substituto para os papéis da última potência mundial e do dólar. O ressentimento contra a "dominação anglo-saxã" não é uma crítica do capitalismo e não tem credibilidade, pois os fluxos unilaterais de exportações aos EUA sustentaram a conjuntura do déficit global.
Na Ásia, na Europa e alhures, as capacidades industriais não viveram de ganhos e salários reais, mas, direta ou indiretamente, do endividamento externo dos EUA.

Déficit global
No fundo, a economia neoliberal das bolhas financeiras foi uma espécie de "keynesianismo mundial", que agora se extingue como a anterior variante nacional do keynesianismo.
Todas as "novas potências" supostamente emergentes estão inseridas de modo economicamente dependente na circulação global do déficit.
Sua dinâmica muito admirada foi uma mera aparência, sem desenvolvimento interno próprio. Por isso não haverá em nenhum lugar o retorno a um capitalismo "sério" com empregos "reais".
Em vez disso, devemos esperar o efeito dominó de uma repercussão da crise financeira na conjuntura mundial, ao qual nenhuma região poderá subtrair-se.
O capitalismo de Estado e o capitalismo concorrencial "livre" evidenciam ser dois lados da mesma moeda. Abala-se não um "modelo" passível de ser substituído por outro, mas o modo vigente da produção e da vida enquanto fundamento comum do mercado mundial.


ROBERT KURZ é sociólogo alemão, autor de "O Colapso da Modernização" (Paz e Terra). Tradução de Peter Naumann.


5 comentários:

Marco disse...

Concordo com o fato de que o Capitalismo 'de mentira' está fadado ao fracasso, mas por ser simplesmente uma versão 'light' do Socialismo, e não o outro lado da moeda do 'capitalismo concorrencial' como o Kurz diz, sem argumento nenhum pra validar essa afirmação.

De fato, as causas dessa crise americana todas podem ser traçadas a intervenção governamental; um banco central emitindo crédito a 1% ( poderiam simplesmente dar dinheiro de graça ), leis que exigiam que bancos extendessem empréstimos a indivíduos de baixa renda ao mesmo tempo permitindo empacotá-los e vendê-los como securities no mercado e dois gigantescos bancos Estatais garantindo o alto risco dessa trapalhada toda com acesso privilegiado ao Tesouro dos EUA. Só precisou a taxa de juro voltar pra níveis mais tradicionais para a proverbial merda acertar o ventilador.

Acho estranho ele não ver um substituto para o dólar como temos hoje. Ele parece ter esquecido que antes de todo o mundo usar papel-verde usávamos ouro como reserva. Mas, como isso era muito imprático para políticos com sonhos de gastança cada vez maiores, isso acabou em 1913 com a criação do Fed e teve o golpe de misericórdia em 1971 quando se cortou de vez com o padrão ouro, que pelo menos impedia o Estado de confiscar a riqueza da população inflacionando a moeda.

Às armas!! hehehe :-P

João disse...

Vamos lá.

1. Não é o "Capitalismo de mentira" que está fadado ao fracasso. É o Capitalismo que atinge seu ponto de ruptura. Essa forma "de mentira" é a evolução natural do sistema que encontra seu limite.

2. A causa da crise não é a intervenção governamental. O Governo/Estado nada mais é do que a face política do sistema de produção. O capitalismo se reflete no governo liberal que garante a sua necessidade de expansão eterna. Deu no que deu.

3. Se ainda não percebeu, confesso logo que não sou economista. Mas também não sou nenhum ignorante. Por isso não posso ter a certeza que gostaria de ter nesse ponto. Mas imagino que um dos motivos que obrigou o mercado mundial a deixar o lastro ouro foi essa necessidade de crescer sem limites que o metal talvez não garantisse. Voltar ao ouro é inviável pelo tamanho da economia de hoje. Mesmo "de mentira", ela não vai simplesmente se retrair. Economistas, manifestem-se.

Abraço.

Marco disse...

Cara, não assino embaixo desse 'governo como face do sistema de produção'. No Socialismo pode ser, já que governo e produção estão juntos. Mas a proposta do Liberalismo é oposta, é de que o governo simplesmente garante os direitos individuais, não interferindo na produção. Então, de que lado dessa cerca está o governo dos EUA, sinceramente?

Os EUA abandonaram o lastro ouro simplesmente porque é muito inconveniente no que ele limita o tamanho do governo. Com ele a única forma de gastar é tomando o $ de outros, o que tem o efeito desagradável de incitar revoltas. Quando a posse do ouro é tornada ilegal, o indivíduo fica indefeso ao confisco da sua riqueza através da inflação.

Comparado com o sistema de livre competição entre bancos do século XIX fica bem claro que não é a evolução 'natural' do Liberalismo, mas um retrocesso a um controle centralizado, que, vale repetir, é uma idéia do manifesto Comunista.

Agora se a volta ao ouro é inviável ou não, não faço idéia. Certamente é contra os interesses da elite, afinal ter o poder de criar o dinheiro de reserva do mundo inteiro não é exatamente algo que eu abriria mão. Mas sei que se a nota de 100 que você tem no bolso tem o valor que o governo diz que tem, liberdade não existe.

Ah, e eu também não sou economista não cara. Rato de biblioteca, mas amador mesmo assim.

Abraço

Poliana Lima disse...

Marco,

O Romantismo é uma escola filosófica ultrapassada.

Passe a observar a realidade e verás que é efetivamente a produção que determina (dialeticamente claro) os outros setores da sociedade. Isso é ontológico, ou seja, independe da sua interpretação.

O primeiro passo pra compreender a realidade é não se iludir.
Sem mais...
Abraço

Marco disse...

O industrialista mantém as mentes das massas sujeitas ao seu jugo totalitário? O que quer que ele fabrique será comprado? Fala sério?

Me desculpe, mas é o consumidor quem determina a produção, e em última análise, determina os 'outros setores' da sociedade.

O empreendedor simplesmente troca a segurança do emprego assalariado e assume riscos pela possibilidade de lucro futuro atendendo a uma demanda não satisfeita. Pão de forma, iPods, cocaína, foguetes orbitais.

Aliás, no Socialismo sim, a produção determina toda a sociedade. E de cima pra baixo, sem consideração pelos consumidores, pois, abolida a propriedade privada, não há mercado ou sistema de preços, tornando o problema do cálculo econômico impossível de solucionar e todo 'planejamento' um salto no escuro.

Abraços